PENSO SOBRE — Tércia Montenegro e as crueldades mais íntimas em “Turismo para Cegos”

Ivan de Melo.
3 min readDec 4, 2020

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Sigo nas leituras do projeto #olharestiresianos no qual tenho lido literatura que aborde a cegueira como tema central e desta vez comento Turismo para Cegos, livro de 2015 da escritora cearense Tércia Montenegro.

O romance de Tércia atenta para uma das potências da cegueira como tema explorado pela literatura contemporânea, aquela que permite uma liberdade do autor em construir uma narrativa em que a ausência da visão é mote para que nada seja exatamente aquilo que parece ser, para que as coisas ocultas se exprimam de forma a serem entrevistas e para que as fronteiras mais sólidas do texto se dissolvam como num trompe l’oeil que desafia e desorienta o leitor (cujo ápice da vertigem está em Carta sobre os Cegos para Uso dos que Veem de Mario Bellatín (Cultura e Barbárie, 2018)).

Acompanhamos a história de Pierre e Laila, um homem feio e uma mulher cega. Essa história nos é contada por uma terceira personagem cujo interesse por este relacionamento, a princípio alheio a si, vai se descortinando aos poucos. Na tentativa de escrever um comentário que respeite o cuidado com os spoilers percebo como é difícil dar mais sobre a narrativa de Turismo para Cegos além do início deste parágrafo. O que temos neste livro são personagens que extrapolam seus estereótipos para se revelarem seres cujos desejos mais íntimos beiram a crueldade nos menores atos. Laila faz usos limites de sua cegueira de maneira provocadora e nos deixa incertos quanto ao que nutrir por suas ações; Pierre escolhe bem aquilo que mostra e aquilo que esconde do leitor e duvidamos das imagens que captura em seu relacionamento; a narradora por sua vez, ensaia um papel estranho e que parece lhe caber bem.

Tércia não se priva de criar uma história intrincada de relacionamentos marcados pelas aparências desfocadas, criando para isso imagens que se duplicam como um labirinto de espelhos, o que podemos ver nos títulos de capítulos que se repetem ao longo do livro, mas também na relação de Laila com seus Pierre’s. Essa sobreposição de quadros que se revelam outros também é exemplificada pelas colagens produzidas pela mulher cega em seu difícil processo de desapego do mundo visível, aliás este um desafio encarado não apenas por Laila.

pôster de “Blind” (dir. Eskil Vogt, 2014)

Recomendo muito a leitura por tudo o que ela deixa no ar. É um daqueles livros que fechamos após seu término com algumas reticências no olhar. O livro tem “cenas” que, como o Sangue no Olho (Cosac Naify, 2014) da Lina Meruane, me lembraram o filme Blind (2014) do norueguês Eskil Vogt ao explorar a relação entre a cegueira e o feminino. Fica a dica aí de um bom trio para “passar os olhos”. JURO que este comentário faz sentido. e não é apenas uma piada de mau gosto.

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Ivan de Melo.
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Written by Ivan de Melo.

Historiator, bibliófilo e amante do aleatório. Por aqui uma curadoria de tudo o que me atravessa.

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