PENSO SOBRE — O retrato de uma época e a maquinação da vingança em “O Conde de Monte Cristo”
Existem alguns livros em que simplesmente moramos durante a leitura. São geralmente livros grandes, calhamaços que contém histórias que se estendem por páginas a fio e, quando somados a uma boa narrativa, são capazes de nos transportar para outros cenários e outros tempos, nos lembrando de uma das magias da leitura, talvez a primeira delas e que descobrimos nos livros ainda na infância. Morei em O Conde de Monte Cristo e suas mais de mil e quinhentas páginas entre o final de 2019 e boa parte de 2020 e tive uma ótima experiência como leitor.
A história, que tem inspiração em um caso real, é ambientada na França, Itália e região Mediterrânea do início do século XIX durante o período em que o primeiro país vivenciou as tensões sociais decorrentes da Restauração Francesa na qua o cenário político era instável e dividia a população entre monarquistas a favor dos Bourbon que se reestabeleciam no poder e sectários do bonapartismo, considerado um crime de traição à Coroa no momento em que Napoleão permanecia exilado do território francês. É no meio desta situação que Edmond Dantés, um jovem marinheiro, é vítima de um complô de três homens que o levará injustamente a uma pena perpétua nas masmorras do Castelo de If, uma prisão em que viverá longe de seu pai e de sua amada por quatorze anos. É neste cativeiro que Dantés conhece um amigo que lhe ajuda a entender o plano de seus inimigos e também lhe mostra a direção de um antigo tesouro escondido na remota ilha Mediterrânea de Monte Cristo. Após um eletrizante plano de fuga, Dantés encontra o tesouro, adota o título que nomeia o romance e maquina uma longa e paciente jornada de vingança contra aqueles que o traíram.
À primeira vista, a sinopse de O Conde de Monte Cristo parece ordinária, mas de fato não o é se levarmos em consideração de que esta foi uma das primeiras narrativas da literatura que enfatizaram a busca pela vingança como leitmotiv, apresentando assim as bases para muitas — e foram mesmo muitas — as narrativas derivadas que seguiram este modelo desde então. Não o é também pela engenhosidade da trama tecida por Dumas. A vingança, o tal prato que se come frio, é lentamente premeditada pelo Conde em um movimento que afeta uma teia de outros personagens antes de atingir, inevitavelmente, suas vítimas pretendidas. Dantés assume uma série de identidades e vai mexendo todas as peças do tabuleiro assumindo o papel que será atribuído pelos desavisados à fatalidade do destino. Isso faz com que o romance não perca o fio de sua meada mesmo alternando seu ritmo, o que faz com constância, e sem deixar de surpreender o leitor com a queda de uma fileira de dominós até que o objetivo do protagonista seja alcançado. Ao mesmo tempo, a saga de Dantés também consegue imprimir reflexões interessantes sobre os limites de uma obsessão que poderão nos levar a discordar de alguns dos atos do justiceiro. Nesse sentido, a obra consegue tratar também de temas mais leves como a esperança, o perdão e a escolha pelo futuro em detrimento do passado.
O romance foi escrito por Alexandre Dumas (o pai) com o auxílio de seu ghost writer ajudante Auguste Maquet e foi originalmente publicado no formato de folhetim entre 1844 e 1846 obtendo uma grande aprovação do público leitor, tornando-se logo um dos títulos clássicos da literatura mundial, traduzido em todos os idiomas possíveis e com ampla influência cultural até os dias de hoje. Sua publicação no Brasil, por exemplo, começou com poucos meses de atraso em relação à edição francesa, nas páginas do Jornal do Commercio já em 1845 caindo desde aquele momento também no gosto dos leitores brasileiros. Como se não bastasse a história, a escrita de Dumas é também singela. Podemos ler O Conde de Monte Cristo como um romance histórico e não apenas pelo contexto e espacialidades em que sua trama se desenrola, mas também pela fina descrição de seus personagens e de suas mentalidades, um verdadeiro testemunho de seu tempo que nos ajuda a compreender o “espírito” de sua época.
Fico feliz de incluir mais um clássico na lista de lidos com a certeza de que guardarei algumas cenas memoráveis desta história como as aquelas entre a prisão de Dantés e a sua fuga, escritas com uma precisão hoje cinematográfica. Dentre as muitas edições sempre disponíveis, li e recomendo a edição do selo Clássicos Zahar, comodamente dividida em dois volumes e contando com ilustrações originais da terceira edição francesa.
PENSO SOBRE é a aba que acompanha as resenhas, pensamentos e comentários sobre as obras que leio. São textos curtos e sem spoiler que podem servir como um review dos títulos para aqueles que se interessarem pela leitura.