LETRA E CENA — As “Mulherzinhas” de Louisa May Alcott e de Greta Gerwig
Este texto não é uma resenha de Mulherzinhas, romance escrito pela estadunidense Louisa May Alcott em 1868, mas pretendo escrever uma mais adiante. Aqui, no entanto, gostaria de fazer uma espécie de comentário, de cotejamento mesmo, entre o livro e sua última adaptação para os cinemas nas mãos da diretora, também estadunidense, Greta Gerwig em produção de 2019. Este texto não tem como objetivo uma comparação de qual linguagem seria a melhor para se conhecer a obra, mas antes uma espécie de reflexão sobre as escolhas de Gerwig na adaptação do texto original para as telas. O romance e o filme, a meu ver, sucedem quando propõem experiências distintas para o leitor e espectador a partir de uma raiz comum e nesse sentido acredito que a versão de Gerwig tem muito a contribuir para este efeito.
Bem, é necessário dizer que Gerwig não inventou a roda. Desde o início do cinema estadunidense Mulherzinhas é um romance que tem ganhado uma série de adaptações com a primeira delas em 1917, segundo registros do IMDB. Entre as mais famosas estão as de 1933 sob direção de George Cukor e protagonizado por Katharine Hepburn, e a de 1994 que apresenta Susan Sarandon, Kirsten Dunst e Winona Ryder. Temos ainda por aí versões em anime e em séries de TV, a última destas ainda de 2017. O fato é que a história das irmãs Jo, Beth, Meg e Amy se constituiu como uma importante referência cultural para os estadunidenses, em muitos casos como um marco da literatura infanto-juvenil presente na formação de muitos leitores daquele país, próximo talvez do que O Sítio do Pica Pau Amarelo de Monteiro Lobato é (ou foi) para muitos brasileiros.
Frente ao desafio de adaptar uma história talvez já datada, Gerwig tenta imprimir em sua versão um olhar sobre os conflitos no processo de amadurecimento das personagens, uma marca registrada de seu cinema como vimos anteriormente em Lady Bird: A Hora de Voar (2017) e Frances Ha (2012), este último em roteiro que escreveu junto a Noah Baumbach. Para tanto, Gerwig opta por um encadeamento da narrativa que mescla o presente das irmãs adultas com flashbacks que remontam a sua infância. Esta escolha cria um ritmo muito revigorante para a história, uma vez que Louisa May Alcott dividiu sua obra em dois momentos: Mulherzinhas, publicado em 1868 e que conta a infância das irmãs, e uma continuação intitulada Boas Esposas publicado no ano seguinte. As duas edições só foram unidas a partir de 1880, mas ainda é possível encontrar edições separadas como a última publicada por aqui pela José Olympio. Esta colagem de tempos é utilizada de forma inteligente por Gerwig, sobretudo quando constroi planos espelhados como nas cenas em que Jo acompanha a convalescência de Beth, momento em que as cores do filme, que possui uma bela fotografia, se destacam.
A ênfase que Gerwig dá à condição social da mulher no século XIX é outro grande acerto. Personagens como Jo e Amy, que protagonizam uma disputa intensificada nesta adaptação, figuram duas questões importantes que são levantadas, da maneira que lhe foi possível, por Louisa May Alcott, a saber: as possibilidades de trabalho e instrução para as mulheres e o peso do casamento como instituição. Sabemos que Alcott teve por base sua própria história junto a suas irmãs para construir o romance e que sua formação intelectual foi marcada pelas ideias mais progressistas à disposição na época como as abolicionistas e as sufragistas, fruto da influência de seus pais e de seu círculo de amigos próximos que contou com nomes como Henry David Thoreau e Nathaniel Hawthorne. Alcott sofreu na pele as agruras de uma vida pobre e limitada, assim como as diversas recusas que sofreu por parte de editores que lhe diziam que histórias “com moral” não vendiam. Apesar de nunca ter se casado e constituído família, a autora deveu o sucesso de suas histórias a essa fórmula comum e Jo, sua representação no romance, casa-se e encontra, ainda que tardiamente, o devido sucesso a exemplo de suas irmãs, seus filhos inclusive protagonizam outras continuações da obra que lhe renderam sucesso intituladas Little Men (1871) e Jo’s Boys (1886). É essa rendição consentida de Alcott que movimenta uma parte interessante do longa de Gerwig. Durante todo o filme somos apresentados ao possível par romântico de Jo, mas ao final não sabemos se houve de fato a união do casal, pois passamos a acompanhar a produção do romance Mulherzinhas, no qual a personagem pode ter seguido a recomendação de seu editor de casar sua protagonista para que o livro fosse aceito pelo público leitor. Ainda sobre a questão do casamento, a personagem Amy interpretada por Florence Pugh tem uma ótima fala sobre o raciocínio lógico empregado pelas mulheres na escolha de seus futuros parceiros, uma licença mais livre sobre o texto original e carregada do tom dramático que fecha a parcela mais crítica que podemos encontrar no filme como um todo.
Há dois pontos deixados de lado na adaptação de Gerwig que a meu ver fizeram um grande favor ao conjunto pretendido. O primeiro deles é o forte moralismo cristão, presente sobretudo na infância das personagens, que tem na obra O Peregrino (1678) de John Bunyan uma forte referência e que empaca a leitura do romance em diversos momentos. O segundo é o cenário histórico em que a narrativa ocorre. A primeira parte do romance de Alcott ocorre durante os eventos da Guerra Civil Americana, conflito que durou entre 1861 e 1865 em que o território estadunidense foi dividido entre os separatistas do Sul que defendiam a mão de obra escravizada e os constitucionalistas do Norte que lutavam pela união do território e os ideais republicanos. No romance, o espectro da guerra é marcado pela ausência do pai das personagens e pelo receio constante de sua morte em batalha. A própria Alcott participou ativamente desse período como enfermeira voluntária em postos de atendimento a soldados, mas voltou para casa meses depois após ter contraído uma febre tifoide que marcaria sua vida. No filme, o cenário histórico se perde em meio as idas e vindas entre passado e presente, o que não pesa sobre o resultado, mas faz com que uma cena que remete aos sacrifícios da guerra protagonizada pela mãe das meninas fique um tanto perdida.
Se eu puder terminar o texto com ressalvas eu diria que o excesso de estrelismo do filme me incomodou levemente. É um rol de estrelas como Laura Dern, Meryl Streep, Timothée Chalamet, Chris Cooper, Emma Watson e até Louis Garrel que pintam a flor e não acrescentam em nada ao longa e sempre fico meio irritado quando bons atores e atrizes são escalados por seus nomes e não por suas boas atuações. As únicas que brilham aqui são Saoirse Ronan e Florence Pugh e foram por isso mesmo indicadas ao Oscar de 2020 para as categorias de melhor atriz e melhor atriz coadjuvante, respectivamente. Achei a Pugh um tanto caricata em sua representação da Amy na infância (meio Tidinha mesmo, sabe?), e pude finalmente fazer as pazes com a Saoirse de quem tinha me afastado desde Ladybird por ter achado sua personagem meio chata. Greta não poderia ter feito escolha melhor para interpretar o gênio por vezes irrefletido de Jo March.
Quando li Mulherzinhas confesso que fiquei um pouco frustrado com o relato de Alcott de seu próprio tempo, isso porque esperava encontrar o mesmo tom fervoroso das tiradas e observações de costumes presentes em outras autoras de sua época como as inglesas Jane Austen, Charlotte Brontë (a quem Alcott lia), ou mesmo de sua conterrânea Charlotte Perkins Gilman. O fato é que Alcott fez o que pôde e tirou proveito disso na esfera pública que ocupou com dificuldades, vale a pena citar sua produção literária de não-ficção como uma grande referência nos primeiros escritos em prol do sufrágio feminino. Sem cometer os anacronismos que guiam o nosso olhar a encontrar nestas autoras sopros para os nossos anseios mais contemporâneos, terminamos por compreender estes textos como verdadeiros documentos sobre uma existência possível a luz de sua época. Greta Gerwig parece entender isso, respeita não apenas o romance original presente na memória coletiva, mas a própria biografia de Alcott sem deixar de destacar os pontos que acha relevante para re-contar essa história com uma outra camada de subjetividade. Nesse sentido, Mulherzinhas é sim uma boa adaptação para o romance.
LETRA E CENA é uma tag em que escrevo sobre duas paixões: a literatura e o cinema. Não busco nestes textos comparar as linguagens, mas antes comentar as escolhas dos diretores e roteiristas em relação aos textos originais e de que forma livro e filme dialogam para criar experiências distintas de leitura.