LAMPEJO — Entre o tarot e a literatura. pequenos rituais de espiritualidade.

Ivan de Melo.
4 min readNov 24, 2020

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a carta da Rainha de Copas no tarot de Hudes

Minha relação com o tarot (eu gosto da imponência do “t” mudo da escrita francesa) remonta estranhamente à minha infância, mais especificamente por volta dos sete ou oito anos de idade quando comecei a frequentar as bibliotecas públicas da periferia de São Paulo, onde cresci. Junto aos quadrinhos de super herois minha primeira formação como leitor foi acompanhada por livros de ocultismo, então era comum eu caminhar até o guichê da biblioteca com gibis dos X-Men e um manual sobre astrologia, I Qing, quiromancia, angelologia e derivados para receber um olhar meio debochado da recepcionista. Não sei dizer de onde vinha o interesse por estes temas, eu só viria conhecer Harry Potter e ser incitado de fato pela magia fantástica anos mais tarde, mas alguma coisa nas imagens misteriosas que ilustravam aqueles livros, nos nomes daquelas constelações, nas linhas daquelas mãos me fascinavam. Também não posso dizer que entendia aqueles livros naquela época, mas já se tratava de um interesse que me perseguiria durante toda a vida, de modo que ainda tenho por aqui alguns livros comprados em “feiras místicas” nesse meio tempo.

as cartas da Torre e da Estrela, respectivamente, nas ilustrações do tarot de Marselha

Ganhei meu primeiro tarot de um amigo por volta dos dezesseis ou dezessete anos e aprendi que o tal baralho usado para usos divinatórios era também uma espécie de arte. Existem centenas de versões do tarot ilustradas por diferentes artistas e é comum encontrar colecionadores do gênero por aí, existem também trabalhos que derivam da “lógica” estrutural do tarot para produzir outros baralhos, como os produzidos pela Uusi que recentemente lançou um baseado na tabela periódica. Até então eu conhecia apenas os tarots de Marselha e de Rider-White, os mais tradicionais e antigos, cujas ilustrações estampam a maioria dos manuais já escritos sobre o tema. Aquele que ia parar em minhas mãos e o qual tenho até hoje era o tarot de Hudes, ilustrado por Susan Hudes em 1995 a partir de imagens medievais. Desde então — já fazem dez anos — tentei aprender o tarot muitas vezes, mas sempre descobri que muito tempo e dedicação são necessários para apreender o mesmo. O tarot é um jogo que remonta ao século XV, uma complexa arte divinatória, um atravessamento que parte do Tolo/Louco em direção ao Mundo (ou não) e também uma filosofia, algo que Alejandro Jodorowsky aborda no seu famoso O Caminho do Tarot (2004).

a carta Zinco do baralho “Materia Prima” produzido pela Uusi (@uusidesignstudio)

Numa das minhas últimas tentativas de aprendizado passei a sacar uma carta toda manhã e a levá-la comigo durante o dia. As cartas iam fazendo as vezes de marca páginas nos livros que eu lia, uma forma de regularmente bater o olho e buscar rememorar o seu significado, o que funcionou por algum tempo. Num desses dias, enquanto abria um livro no ônibus, uma pancada forte de vento arrancou a carta da minha mão e a levou janela afora. Eu fiquei extasiado por um momento e só consegui rir de nervoso pela perda. A carta do dia era a Morte, o décimo terceiro arcano maior do tarot, uma carta que em sua melhor leitura propões fins de ciclos, mudanças, novos começos e metamorfoses. A ilustração de Hudes mostrava um esqueleto com asas de borboleta brotando dos ossos ílios, uma das cartas mais bonitas do conjunto. Procurei não levar a sério qualquer tipo de presságio que aquela carta solapada pudesse comunicar.

Uma vez me perguntaram o que era um baralho sem uma carta e eu respondi que era a impossibilidade de apenas alguns jogos. Um tarot sem uma de suas setenta e oito cartas é a desestruturação de um universo, uma escada com degraus a menos. Nem por isso deixei de continuar marcando as páginas dos livros que leio com as cartas que restaram. Gosto de tirar uma carta que me acompanhará durante toda uma leitura e sinto prazer em procurar pelo seu significado. Outras cartas desapareceram de lá até aqui, mas sei que todas habitam um livro que circula em mãos amigas ou estão esquecidas em algum lugar da minha biblioteca pessoal. Descobri uma espécie de necessidade deste pequeno ritual de espiritualidade no qual misturo tarot e literatura e lembro que nomes como Caio Fernando Abreu e Carl Jung tinham os seus próprios nesta mesma esteira. A quarentena tem me feito pensar sobre estes pequenos espaços voltados para a espiritualidade, por vezes a última das nossas prioridades no nosso cotidiano de tarefas. Li recentemente uma matéria sobre como a cultura do wellness se expandiu durante a pandemia e a procura por práticas esotéricas e de orientação espiritual alcançou níveis inéditos. A tecnologia encontrou aí um nicho muito proveitoso com aplicativos que buscam personalizar a experiência do usuário do à la carte meditativo do Meditopia a astrologia descolada e transmidiática do Co-Star (que conta com mais 1.5 milhão de seguidores no IG).

Seja como for, o momento lançou uma lupa sobre estes cuidados e passei a percebê-los em gestos pequenos e necessários como este em que retiro a carta da Rainha de Copas, uma carta que representa a compaixão, a calma e o conforto, para marcar o livro que começo agora. Algo me diz que a leitura será boa.

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Ivan de Melo.
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Written by Ivan de Melo.

Historiator, bibliófilo e amante do aleatório. Por aqui uma curadoria de tudo o que me atravessa.

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