DIALOGISMOS — “Devassos no Paraíso” de João Silvério Trevisan

Ivan de Melo.
4 min readDec 1, 2020

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grafite na Castro Street Station, San Francisco California, 1991 (@lgbt_history)

“Qual o custo? Em troca da ampliação do gueto e da relativa liberalização fora dele, houve pesados juros a pagar. Tal como constituída, a cena guei visa basicamente cumprir as necessidades imediatas do consumo sexual: o foco de interesse se concentra sobretudo abaixo da cintura. Trata-se, portanto, de um controle social menos aparente (e, por isso, mais sofisticado): só se pode ser homossexual na fronteira exata que abrange o sexo. Em outras palavras, essa liberdade controlada supõe que ser homossexual se reduz, lamentavelmente, a fazer sexo”

(TREVISAN, João Sivério. Devassos no Paraíso: A Homossexualidade no Brasil da Colônia à Atualidade. Objetiva, 2018. Pos. 7856 do e-book Kindle)

Já faz alguns meses que “Devassos no paraíso”, a bíblia gay escrita por João Silvério Trevisan, tem ocupado um lugar na minha cabeceira. Aos 55% da obra lida já tenho as minhas reservas, mas também alguns destaques que considero seus pontos altos. Um destes pontos é a escrita participativa de Trevisan em momentos importantes da história política homossexual, como sua participação ativa na fundação do grupo Somos, um dos primeiros a se mobilizar em prol dos direitos homossexuais aqui no Brasil. Como historiador e homem gay, essa leitura tem me feito pensar sobre a ausência destas narrativas durante a construção da minha própria homossexualidade, momento em que diversos temas próprios a esta história, como as abordagens patologizantes e o surto da AIDS durante a década de 1980, pairavam ao meu redor muitas vezes como tabu. Uma história como esta poderia ajudar a compreender — e com alguma antecipação — a minha própria presença numa sociedade que convenientemente aceita a homossexualidade como uma prática sexual a ser restrita e não como uma parte da minha identidade como sujeito. A citação do Trevisan destacada denuncia como a homossexualidade foi menos aceita que assimilada na sociedade ao passo que a prática homossexual se conformou com o passar do tempo a esse lugar que se restringe a padronização de comportamentos que se resumem, em grande medida, ao sexo. O autor destaca, por exemplo, como o mercado GLS que começa a se formar na década de 1970 compreende um importante nicho que auxilia esse movimento de anexação social, mas estamos falando de saunas e boates gays, espaços que se conformaram para o mercado sexual e que demarcaram os espaços ocupados por estes grupos. Se compararmos com o nicho cultural, por exemplo, ainda temos um grande caminho a percorrer, pois é a existência da diversidade, das práticas distintas dxs corpxs em performance de gênero e sexualidade ocupando espaços na esfera pública; e de tudo aquilo que escapa da esfera sexual, como a defesa por direitos básicos, o reconhecimento do casamento, da adoção e dos modelos diversos de família, que incita o ódio dormente de grupos conservadores que impregnam os setores políticos. Não à toa é comum que em debates sobre estes temas, as reações em contraposição retornem agressivamente ao campo do sexo. Bolsonaro e sua corja constantemente deslegitimaram a luta por direitos LGBTQIA+, como a criminalização da homofobia, associando-os pejorativamente ao uso do “aparelho excretor” no ato sexual em uma deliberada condensação dos grupos que compõem a sigla.

Se eu, um homem branco gay, sinto falta dessas narrativas sobre a história do grupo a qual eu me identifico de alguma forma, um grupo que protagoniza boa parte da pouca história homossexual que circula por aí e em parte culpado pelo apagamento das histórias dos outros grupos, penso sobre como essa mesma ausência afeta aqueles que pertencem a estes pertencem. E talvez aqui eu possa voltar as minhas reservas quanto ao livro do Trevisan. Apesar dos esforços pela presença do diverso, “Devassos no paraíso” é um livro que enfatiza a história gay masculina da qual o autor ocupa um lugar de fala que lhe permite tratar do tema como um partícipe. Há outras subjetividades e urgências que perpassam a história dos outros grupos que compõem a surrada sigla LGBTQIA+ e que necessitam de uma narrativa própria. Essa semana, ainda pensando sobre essas questões, assisti a uma mesa-redonda na programação da VI Semana de História da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL/MG) intitulada “História Pública e Diversidade”. Uma das convidadas era a professora Megg Oliveira (UFPR) que compartilhou uma parte de seus conflitos enquanto travesti pesquisadora frente a lógica silenciadora de corpos desviantes instaurada na academia. Megg destacou a importância da presença dos corpos trans nestes espaços para que a produção de conhecimento e de narrativas sobre suas próprias histórias possam se multiplicar a partir daquilo que a teórica feminista Donna J. Haraway chamou de “saberes localizados”, uma citação que eu também encontrei recentemente na leitura de “Lugar de fala” (2019) da Djamila Ribeiro quando a autora também tratava sobre a questão das narrativas. Ecoam aqui aqueles perigos de uma história única da qual nos alertou também Chimamanda Ngozi Adichie, e penso que a circulação destas histórias torna-se fator fundamental para uma formação que preze a diversidade e uma educação voltada para os direitos humanos, mas também para uma parte importante da constituição identitária do sujeito, da compreensão do seu próprios tempo e de sua atuação como um sujeito histórico que também é responsável pelas escritas das narrativas do grupo, seja qual for, que integra. Nesse sentido me preocupa a ainda constante tentativa de algumas ciências, como a histórica, de continuar a promover a distância entre as subjetividades do pesquisador e a abordagem dos objetos de pesquisa como fórmula necessária para uma eficácia na produção científica. Acredito cada vez mais que não podemos construir uma história combativa e democrática sem que esses limites sejam extrapolados.

DIALOGISMOS é uma aba na qual procuro escrever, seguindo os preceitos de Mikhail Bakhtin, os ecos que ressoam entre o texto em questão e o meu ato de leitura. São comentários, inquietações, reflexões, inconstâncias e permanências passageiras de ideias que me atravessam e resvalam aqui na forma de texto.

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Ivan de Melo.
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Written by Ivan de Melo.

Historiator, bibliófilo e amante do aleatório. Por aqui uma curadoria de tudo o que me atravessa.

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